CAFUNDÓ.
Direção: Paulo Betti; Clóvis Bueno. Produção: Prole de Adão;
Laz audiovisual Ltda. 102 min. 2005. Son, Color, Formato: 35mm.
Wagner
Aragão Teles dos Santos1
O
filme se passa no final do século XIX, logo após a abolição da
escravidão no Brasil. Apesar do fim da escravidão, a vida do
liberto, em quase nada mudara se comparado aos anos anteriores.
Estava agora inserido numa sociedade, a qual oferecia condições de
subsistência extremamente limitadas. Sujeitando-se a trabalhos,
geralmente degradantes, em troca do mínimo para sobreviver. Muitos
ainda, ligados aos seus antigos senhores, como forma de garantir
proteção e condições de subsistência.
Segundo Walter Fraga, em seu livro Encruzilhadas da Liberdade, muitos
libertos viam na permanência na propriedade do antigo senhor, uma
alternativa concreta de ampliação dos seus espaços de
sobrevivências e possibilidade de continuar a ter acesso à terra.2
É
nesse contexto histórico que o filme aborda a vida de João de
Camargo, ao lado de seu amigo Cirino. Ambos são enviados no início
do filme para combater na Revolução Federalista em 1893, no Rio
Grande do Sul, alistando-se no Exército a mando de seu ex-senhor,
para servir a recém criada República Federativa do Brasil.
Ao
voltar da guerra, João de Camargo têm dificuldades de se inserir
socialmente na cidade de Sorocaba, pois, o Brasil Republicano passava
agora por uma tímida industrialização nas cidades, dificultando
assim, o cotidiano daqueles que passaram a vida toda trabalhando no
campo.
Com
o fim da escravidão, houve no Brasil uma grande entrada de
imigrantes europeus. A vinda desse imigrantes, certamente, tiraram a
oportunidade de emprego de muitos libertos, pois, aumentara-se a
oferta de mão de obra, principalmente, na região cafeeira do
Brasil. Havia a preferência dos senhores do café pela força de
trabalho vinda da Europa, impulsionando, em grande medida, parte dos
libertos para áreas urbanas. Segundo Boris Fausto, “cerca de 3,8
milhões de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930. […]
Essa concentração se explica, além de outros fatores, pela forte
demanda de força de trabalho naqueles anos para a lavoura do café.”3
Em
meio a esses problemas socioeconômicos, a crise de febre amarela, a
morte da mãe e a uma desilusão amorosa, João de Camargo começa a
ter visões espirituais. O filme mostra o futuro Preto Velho
atormentado, num mundo, no qual forças espirituais pareciam estar
tentando lhes dizer algo sobre o seu futuro. Amor, dor, desilusão e
medo da morte, talvez fosse alguns dos sentimentos rotineiros na
vida de inúmeros personagens que viviam em condições semelhantes
ao de João de Camargo, no final do século XIX e início do século
XX no Brasil.
A
partir disso, João tem uma experiência espiritual, na qual se
depara com Exú, Xangô, Nossa Senhora Aparecida e o Monsenhor João
Soares do Amaral; que conhecera em vida. Nessa visão, João Soares
diz a João de Camargo: “vai, levanta filho! Eis muita coisa para
fazer. Vais construir aqui uma capela em homenagem a Senhor do
Bonfim. E para de olhar para dentro. Sua vida vai ser ajudar os
outros. Amenizar a dor. Curar os doentes.”
Diante
dessa experiência, João de Camargo começa a compor sua maneira de
enxergar o mundo que o rodeia, num período de grandes mudanças para
o país, onde estava havendo a consolidação da República do
Brasil, políticas higienistas; baseadas no cientificismo europeu
e a inusitada chegada da iluminação elétrica.
Percebe-se
uma clara assimilação, em sua maneira de enxergar o mundo
espirital, de elementos do Candomblé, do Catolicismo e do
Espiritismo, recém chegado da Europa. Durante a construção da
Igreja Negra e Misteriosa da Água Vermelha, vê-se um ritual
religioso, em que a estrela de Davi; símbolo judaico-cristã, ao
lado de elementos da terra, ainda intimamente ligados à cultura
indígena e africana, estão se misturando na cabeça de João
Camargo, nascendo assim, uma nova forma de conceber o mundo
imaterial.
Diante
das mudanças na vida deste personagem e na do Brasil, o filme
retrata o quanto João de Camargo se tornou uma pessoa conhecida,
principalmente, entre os mais necessitados, atraindo assim, a ira da
Igreja Católica e das políticas sanitaristas que combatiam o
curandeirismo.
A
igreja se incomodava com o sincretismo do novo líder espiritual, que
trazia em grande medida, paz e conforto para uma população que se
via excluída da nova República, recém instaurada.
O
Estado o persegue através das políticas de higienização, que viam
no curandeirismo um retrocesso às medidas de civilizar o Brasil nos
padrões europeus. Vale lembrar, que nesse período, o Rio de
Janeiro, por exemplo, estava vivendo movimentações populares,
contrária a tais medidas, que ficaram conhecidas por Revolta da
Vacina.
O
filme retrata também, o quanto João de Camargo também não era
aceito por quem cultuava a religiosidade vinda da África. Era
acusado de fazer “reza de branco” e de querer virar branco. Para
ele, “quem quisesse viver aqui [Brasil], tem que saber juntar
tudo”. João era o amálgama de várias religiões. No entanto, não
era aceito pelos seus irmão africanos, por estar negando seus
antepassado, tão pouco pela Igreja Católica, que o chamava de
herege. O Estado, acima de tudo, o acusava de curandeirismo.
Há
uma cena no filme, em que percebe-se que a direção quis fazer uma
analogia entre a figura de Cristo e a de João de Camargo. Ao voltar
da prisão, e ver que os fiéis estava fazendo comércio em frente a
Igreja da Água Vermelha, o líder espiritual, derruba todas as
barracas que ali estavam, afirmando que ali não se vendia a palavra
de Deus. Ato semelhante ao que Jesus fez em frente a Sinagoga de
Carnafaum, ao expulsar os que vendiam e compravam produtos naquele
lugar. (Marcos 11:15).
Apesar
de priorizar em alguns momentos, elementos da cultura cristã, em
detrimento de símbolos de outras religiosidades, o filme retrata
bem, a vida do Preto Velho, que se tornou personagem importante da
religiosidade brasileira, por ter levado fé, conforto e atenção
aos que mais necessitavam.
1
Graduado em Licenciatura em História, pelo Centro Universitário
Jorge Amado e Especialista em História Econômica e Social do
Brasil, pela Faculdade São Bento da Bahia.
2
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas
da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia
(1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006,
p.245-282.
3FAUSTO,
Boris. História Concisa do Brasil. 2. ed, São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 2012. p.155.