sábado, 29 de setembro de 2012

Encruzilhadas da Liberdade


                                  
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p.245-282.                           
                            

                                                        
                                                                                                                   Wagner Aragão Teles dos Santos


No capítulo 7 do livro Encruzilhadas da Liberdade, Walter Fraga descreve a trajetória de ex-escravos nos engenhos do Recôncavo baiano após a abolição da escravidão em 1888, analisando os motivos que os levaram a permanecer na região onde foram submetidos aos terríveis intempéries do período da escravidão.
Observando os nomes de moradores de engenhos internados no Hospital da Santa Casa de Santo Amaro, entre os anos de 1906 e 1913, o autor chegou a conclusão que 80,6% dos negros e mestiços internados no hospital residam nos engenhos em que nasceram, indicando baixo número de emigração de ex-escravos para outras regiões.
Segundo Fraga Filho, inúmeros motivos fizeram com que os libertos recorressem a alternativa de permanecer na região ou mesmo, na propriedade do seu antigo senhor. Dentre elas estavam as condições climáticas adversas na Bahia entre os anos de 1888 e 1890, responsáveis pelo desemprego, a carestia e a fome. O medo da repressão policial aumentada com o fim da escravidão, que poderia facilmente prender um simples forasteiro como “suspeito” ou vagabundo.
No entanto, o autor salienta “que nem sempre o desejo de quebrar os laços de dependência com os antigos senhores estava associado à migração para outras localidades”. Muitos viam na permanência na propriedade do antigo senhor, alternativas concretas da ampliação dos seus espaços de sobrevivências e possibilidade de continuar a ter acesso à terra. A mudança, por esse ponto de vista significava um novo e penoso recomeço.
O autor explica que a questão religiosa não pode ser negligenciada ao analisar os motivos responsáveis pela permanência dos libertos nas propriedades de seu antigo senhor. O engenho guardava, além da memória da vida sofrida como escravo, a memória da luta por espaços e do culto aos seus deuses.
Durante esse período, os ex- senhores de escravo se empenharam para manter o controle da força de trabalho em sua região. Como não eram mais proprietários de escravos, redefiniu-se as estratégias de manutenção dessa força de trabalho. Faziam-se da imagem de “protetores” dos antigos escravos para prolongar alguns elementos da simbologia do poder e da autoridade senhorial nesse mundo pós- abolição, perpetuando-se assim, o domínio dos seus poderes por mais algum tempo sobre os moradores do engenho.
Porém, para Fraga Filho, a população liberta aprendeu ao longo de três séculos a lidar com a autoridade do poder paternalista do senhor de engenho. Aceitava-se a “proteção” do senhor, em troca de respeito à condição de homem livre, não sendo mais tolerado castigo, trabalho excessivo ou sem remuneração. Para o autor, essa estratégia de se deixar ser um protegido do seu ex-senhor, era de fundamental importância para movimentar-se no mundo dos brancos, se protegendo de abusos de outros poderosos.
No entanto, ao analisar processos-crimes de cidades do recôncavo baiano, o autor percebe que, para se afastar da interferência, e mesmo, do racismo e da submissão, muitos libertos resolveram se afastar dos engenhos, pois, apesar da abolição da escravidão, no imaginário senhorial as práticas escravistas tendiam a se perpetuar.
                   
Sujeição e liberdade em um engenho do Recôncavo     

         Ao fazer um estudo de caso, investigando e analisando o inventário dos bens de Inácio Rodrigues Pereira Dutra, senhor do Engenho da Cruz, na freguesia do Iguape, Walter Fraga Filho, percebeu que o engenho, em sua primeira safra após a abolição produziu menos do que anteriormente, além de não ter conseguido cumprir com obrigações contratuais no fornecimento de cana para a Bahia Central Factories Limited. Atribuindo-se à perda da mão-de-obra escrava o declínio da produção e impedimento do cumprimento das obrigações contratuais.
           Através do cruzamento do inventário com os registros de batismo da freguesia do Iguape, o autor constatou que boa parte dos trabalhadores nascidos na freguesia, era de propriedade do barão de Iguape, e estes, permaneceram na propriedade para dar continuidade aos serviços, após a abolição da escravidão. No entanto, segundo o autor “Rodrigues Dutra teve que remunerá-los por toda atividade realizada no engenho”.
           Ao analisar as relações de trabalho no contexto pós-abolicionismo, percebe-se a luta dos libertos por autonomia nas horas trabalhadas no engenho. Verifica-se que houve uma diminuição das horas de trabalho empregadas no engenho em troca de atividades autônomas nas roças ou em outras propriedades.
           Ao investigar os registros de nascimento, casamento e óbitos da freguesia do Iguape, Fraga Filho descobre que a maioria dos ex-escravos, além de terem nascidos no Engenho da Cruz, eram também, “filhos de ex-escravos que estavam sob domínio da família Dutra desde a metade do século XIX”.
            Descobriu-se que muitos dos ex-escravos do Engenho da Cruz, utilizavam o sobrenome do antigo senhor. O autor nos explica que utilizar o nome Dutra era provavelmente, uma estratégia utilizada pelos libertos, para transitar num mundo onde as relações sociais eram fundamentais para sobrevivência do individuo.
          Através da análise dos livros de registros de nascimento e óbito guardados no Cartório Civil do Iguape, o autor identifica o quanto foi difícil esse período para os libertos. Tempos em que muitos viram os últimos africanos, crianças e jovens serem enterrados.
            Os documentos revelaram ao autor e pesquisador Walter Fraga Filho, vários incidentes envolvendo os libertos durantes esses primeiros anos após o fim da escravidão. Dentre eles, estavam incidentes relacionados aos limites de dependência impostos pelos ex-escravos, como no caso de desavença entre Luís Rodrigues Dutra e Firmino Bulcão.
 Luís Rodrigues Dutra, sabendo da origem escrava de Firmino Bulcão; ex- escravo do Engenho Acutinga, acreditava que Firmino lhe devia obediência ao ser advertido por estar armado na propriedade de sua família. Algo inadmissível para Firmino em sua nova condição de liberto.
Outra forma de conflito encontrada nos documentos foi a relacionada às transformações sociais que estavam na última década do século XIX e no início do século XX.
Analisando os processos-crimes entre os anos de 1889 e 1894, Walter Fraga chegou à conclusão de que a composição da população de trabalhadores do Engenho da Cruz estava sofrendo algumas modificações importantes. Num levantamento feito com 17 trabalhadores do engenho citados em processos-crimes, apenas cinco pertenciam à lista de pagamentos de trabalhadores do engenho, investigados pelo autor no inventário de Inácio Rodrigues Pereira Dutra de 1888.
 Essa movimentação de indivíduos na região intensificou as tensões e os conflitos, como no caso do assassinato de Isabel Bulcão, morta às margens do rio Açu, em terras do Engenho da Cruz, pelo amássio Possidônio Bulcão, ao lavar roupa com outras mulheres. Possidônio teria matado por ter sido trocado por uma tal Fortunato, que segundo o autor não consta na lista dos trabalhadores de 1888.

Memórias do pós-abolição
                    
            No fim deste capitulo do livro, Walter Fraga Filho expõe o emocionante depoimento de Manoel Araújo Ferreira, imigrante natural de Tanquinho de Feira, que chegou no Engenho da Cruz com a família em 1907 em busca de estadia provisória, mas, que se tornou moradia permanente para sua família.
            Walter se demonstra emocionado ao ver “Manoelzinho” falar sobre pessoas que ele apenas conhecia por documentos. Seu depoimento revelou a frustração do casal Luís Rodrigues Dutra e “dona Amélia, com o fim da escravidão. Demonstrando o quanto foi traumático para os senhores de escravo o 13 de maio de 1888.
            O depoimento de Manoelzinho deixou mais claro para o autor como as relações de trabalho ficaram ajustadas a partir do fim da escravidão. Habitando em casas simples, ainda chamadas de senzalas muitos libertos plantavam suas roças. Pagavam-se aos Dutra para beneficiar a mandioca nas casas de farinha. Segundo Manoelzinho, plantavam-se também roças nas terras dos seus antigos senhores em troca de prestação de serviços em dias pré-determinados.
            Concluindo, o autor deixa claro que a permanência de alguns libertos no Engenho da Cruz, significou a possibilidade de terem acesso à terra, garantindo a sobrevivência da família e preservação de valores culturais próprios. Outros porém, possivelmente migraram para outras localidades, estabelecendo-se em outras regiões do Recôncavo baiano em busca de novas perspectivas.