FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia
(1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p.245-282.
Wagner Aragão Teles
dos Santos
No capítulo 7 do livro Encruzilhadas
da Liberdade, Walter Fraga descreve a trajetória de ex-escravos nos
engenhos do Recôncavo baiano após a abolição da escravidão em 1888, analisando
os motivos que os levaram a permanecer na região onde foram submetidos aos terríveis
intempéries do período da escravidão.
Observando os nomes de moradores de engenhos internados no Hospital da
Santa Casa de Santo Amaro, entre os anos de 1906 e 1913, o autor chegou a
conclusão que 80,6% dos negros e mestiços internados no hospital residam nos
engenhos em que nasceram, indicando baixo número de emigração de ex-escravos
para outras regiões.
Segundo Fraga Filho, inúmeros motivos fizeram com que os libertos
recorressem a alternativa de permanecer na região ou mesmo, na propriedade do
seu antigo senhor. Dentre elas estavam as condições climáticas adversas na
Bahia entre os anos de 1888 e 1890, responsáveis pelo desemprego, a carestia e
a fome. O medo da repressão policial aumentada com o fim da escravidão, que
poderia facilmente prender um simples forasteiro como “suspeito” ou vagabundo.
No entanto, o autor salienta “que nem sempre o desejo de quebrar os laços
de dependência com os antigos senhores estava associado à migração para outras
localidades”. Muitos viam na permanência na propriedade do antigo senhor,
alternativas concretas da ampliação dos seus espaços de sobrevivências e
possibilidade de continuar a ter acesso à terra. A mudança, por esse ponto de
vista significava um novo e penoso recomeço.
O autor explica que a questão religiosa não pode ser negligenciada ao
analisar os motivos responsáveis pela permanência dos libertos nas propriedades
de seu antigo senhor. O engenho guardava, além da memória da vida sofrida como
escravo, a memória da luta por espaços e do culto aos seus deuses.
Durante esse período, os ex- senhores de escravo se empenharam para
manter o controle da força de trabalho em sua região. Como não eram mais
proprietários de escravos, redefiniu-se as estratégias de manutenção dessa
força de trabalho. Faziam-se da imagem de “protetores” dos antigos escravos para prolongar
alguns elementos da simbologia do poder e da autoridade senhorial nesse mundo
pós- abolição, perpetuando-se assim, o domínio dos seus poderes por mais algum
tempo sobre os moradores do engenho.
Porém, para Fraga Filho, a população liberta aprendeu ao longo de três
séculos a lidar com a autoridade do poder paternalista do senhor de engenho. Aceitava-se a “proteção” do senhor, em troca de respeito à condição de
homem livre, não sendo mais tolerado castigo, trabalho excessivo ou sem
remuneração. Para o autor, essa estratégia de se deixar ser um protegido do seu
ex-senhor, era de fundamental importância para movimentar-se no mundo dos
brancos, se protegendo de abusos de outros poderosos.
No entanto, ao analisar processos-crimes de cidades do recôncavo baiano,
o autor percebe que, para se afastar da interferência, e mesmo, do racismo e da
submissão, muitos libertos resolveram se afastar dos engenhos, pois, apesar da
abolição da escravidão, no imaginário senhorial as práticas escravistas tendiam
a se perpetuar.
Sujeição e liberdade em um engenho do Recôncavo
Ao fazer um
estudo de caso, investigando e analisando o inventário dos bens de Inácio
Rodrigues Pereira Dutra, senhor do Engenho da Cruz, na freguesia do Iguape,
Walter Fraga Filho, percebeu que o engenho, em sua primeira safra após a
abolição produziu menos do que anteriormente, além de não ter conseguido
cumprir com obrigações contratuais no fornecimento de cana para a Bahia Central
Factories Limited. Atribuindo-se à perda da mão-de-obra escrava o declínio da
produção e impedimento do cumprimento das obrigações contratuais.
Através do cruzamento do inventário
com os registros de batismo da freguesia do Iguape, o autor constatou que boa
parte dos trabalhadores nascidos na freguesia, era de propriedade do barão de
Iguape, e estes, permaneceram na propriedade para dar continuidade aos
serviços, após a abolição da escravidão. No entanto, segundo o autor “Rodrigues
Dutra teve que remunerá-los por toda atividade realizada no engenho”.
Ao analisar as relações de trabalho
no contexto pós-abolicionismo, percebe-se a luta dos libertos por autonomia nas
horas trabalhadas no engenho. Verifica-se que houve uma diminuição das horas de
trabalho empregadas no engenho em troca de atividades autônomas nas roças ou em
outras propriedades.
Ao investigar os registros de
nascimento, casamento e óbitos da freguesia do Iguape, Fraga Filho descobre que
a maioria dos ex-escravos, além de terem nascidos no Engenho da Cruz, eram
também, “filhos de ex-escravos que estavam sob domínio da família Dutra desde a
metade do século XIX”.
Descobriu-se que muitos dos
ex-escravos do Engenho da Cruz, utilizavam o sobrenome do antigo senhor. O
autor nos explica que utilizar o nome Dutra era provavelmente, uma estratégia
utilizada pelos libertos, para transitar num mundo onde as relações sociais
eram fundamentais para sobrevivência do individuo.
Através da análise dos livros de
registros de nascimento e óbito guardados no Cartório Civil do Iguape, o autor
identifica o quanto foi difícil esse período para os libertos. Tempos em que
muitos viram os últimos africanos, crianças e jovens serem enterrados.
Os documentos revelaram ao autor e
pesquisador Walter Fraga Filho, vários incidentes envolvendo os libertos
durantes esses primeiros anos após o fim da escravidão. Dentre eles, estavam
incidentes relacionados aos limites de dependência impostos pelos ex-escravos,
como no caso de desavença entre Luís Rodrigues Dutra e Firmino Bulcão.
Luís Rodrigues Dutra, sabendo da
origem escrava de Firmino Bulcão; ex- escravo do Engenho Acutinga, acreditava
que Firmino lhe devia obediência ao ser advertido por estar armado na
propriedade de sua família. Algo inadmissível para Firmino em sua nova condição
de liberto.
Outra forma de conflito encontrada nos documentos foi a relacionada às
transformações sociais que estavam na última década do século XIX e no início
do século XX.
Analisando os processos-crimes entre os anos de 1889 e 1894, Walter Fraga
chegou à conclusão de que a composição da população de trabalhadores do Engenho
da Cruz estava sofrendo algumas modificações importantes. Num levantamento
feito com 17 trabalhadores do engenho citados em processos-crimes, apenas cinco
pertenciam à lista de pagamentos de trabalhadores do engenho, investigados pelo
autor no inventário de Inácio Rodrigues Pereira Dutra de 1888.
Essa movimentação de indivíduos na
região intensificou as tensões e os conflitos, como no caso do assassinato de
Isabel Bulcão, morta às margens do rio Açu, em terras do Engenho da Cruz, pelo
amássio Possidônio Bulcão, ao lavar roupa com outras mulheres. Possidônio teria
matado por ter sido trocado por uma tal Fortunato, que segundo o autor não
consta na lista dos trabalhadores de 1888.
Memórias do pós-abolição
No fim deste capitulo do livro, Walter
Fraga Filho expõe o emocionante depoimento de Manoel Araújo Ferreira, imigrante
natural de Tanquinho de Feira, que chegou no Engenho da Cruz com a família em
1907 em busca de estadia provisória, mas, que se tornou moradia permanente para
sua família.
Walter se demonstra emocionado ao
ver “Manoelzinho” falar sobre pessoas que ele apenas conhecia por documentos.
Seu depoimento revelou a frustração do casal Luís Rodrigues Dutra e “dona
Amélia, com o fim da escravidão. Demonstrando o quanto foi traumático para os
senhores de escravo o 13 de maio de 1888.
O depoimento de Manoelzinho deixou
mais claro para o autor como as relações de trabalho ficaram ajustadas a partir
do fim da escravidão. Habitando em casas simples, ainda chamadas de senzalas
muitos libertos plantavam suas roças. Pagavam-se aos Dutra para beneficiar a
mandioca nas casas de farinha. Segundo Manoelzinho, plantavam-se também roças
nas terras dos seus antigos senhores em troca de prestação de serviços em dias
pré-determinados.
Concluindo, o autor deixa claro que
a permanência de alguns libertos no Engenho da Cruz, significou a possibilidade
de terem acesso à terra, garantindo a sobrevivência da família e preservação de
valores culturais próprios. Outros porém, possivelmente migraram para outras
localidades, estabelecendo-se em outras regiões do Recôncavo baiano em busca de
novas perspectivas.