sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Cafundó



CAFUNDÓ. Direção: Paulo Betti; Clóvis Bueno. Produção: Prole de Adão; Laz audiovisual Ltda. 102 min. 2005. Son, Color, Formato: 35mm.




Wagner Aragão Teles dos Santos1


O filme se passa no final do século XIX, logo após a abolição da escravidão no Brasil. Apesar do fim da escravidão, a vida do liberto, em quase nada mudara se comparado aos anos anteriores. Estava agora inserido numa sociedade, a qual oferecia condições de subsistência extremamente limitadas. Sujeitando-se a trabalhos, geralmente degradantes, em troca do mínimo para sobreviver. Muitos ainda, ligados aos seus antigos senhores, como forma de garantir proteção e condições de subsistência.

Segundo Walter Fraga, em seu livro Encruzilhadas da Liberdade, muitos libertos viam na permanência na propriedade do antigo senhor, uma alternativa concreta de ampliação dos seus espaços de sobrevivências e possibilidade de continuar a ter acesso à terra.2

É nesse contexto histórico que o filme aborda a vida de João de Camargo, ao lado de seu amigo Cirino. Ambos são enviados no início do filme para combater na Revolução Federalista em 1893, no Rio Grande do Sul, alistando-se no Exército a mando de seu ex-senhor, para servir a recém criada República Federativa do Brasil.

Ao voltar da guerra, João de Camargo têm dificuldades de se inserir socialmente na cidade de Sorocaba, pois, o Brasil Republicano passava agora por uma tímida industrialização nas cidades, dificultando assim, o cotidiano daqueles que passaram a vida toda trabalhando no campo. 

Com o fim da escravidão, houve no Brasil uma grande entrada de imigrantes europeus. A vinda desse imigrantes, certamente, tiraram a oportunidade de emprego de muitos libertos, pois, aumentara-se a oferta de mão de obra, principalmente, na região cafeeira do Brasil. Havia a preferência dos senhores do café pela força de trabalho vinda da Europa, impulsionando, em grande medida, parte dos libertos para áreas urbanas. Segundo Boris Fausto, “cerca de 3,8 milhões de estrangeiros entraram no Brasil entre 1887 e 1930. […] Essa concentração se explica, além de outros fatores, pela forte demanda de força de trabalho naqueles anos para a lavoura do café.”3

Em meio a esses problemas socioeconômicos, a crise de febre amarela, a morte da mãe e a uma desilusão amorosa, João de Camargo começa a ter visões espirituais. O filme mostra o futuro Preto Velho atormentado, num mundo, no qual forças espirituais pareciam estar tentando lhes dizer algo sobre o seu futuro. Amor, dor, desilusão e medo da morte, talvez fosse alguns dos sentimentos rotineiros na vida de inúmeros personagens que viviam em condições semelhantes ao de João de Camargo, no final do século XIX e início do século XX no Brasil.

A partir disso, João tem uma experiência espiritual, na qual se depara com Exú, Xangô, Nossa Senhora Aparecida e o Monsenhor João Soares do Amaral; que conhecera em vida. Nessa visão, João Soares diz a João de Camargo: “vai, levanta filho! Eis muita coisa para fazer. Vais construir aqui uma capela em homenagem a Senhor do Bonfim. E para de olhar para dentro. Sua vida vai ser ajudar os outros. Amenizar a dor. Curar os doentes.” 

Diante dessa experiência, João de Camargo começa a compor sua maneira de enxergar o mundo que o rodeia, num período de grandes mudanças para o país, onde estava havendo a consolidação da República do Brasil, políticas higienistas; baseadas no cientificismo europeu e a inusitada chegada da iluminação elétrica. 

Percebe-se uma clara assimilação, em sua maneira de enxergar o mundo espirital, de elementos do Candomblé, do Catolicismo e do Espiritismo, recém chegado da Europa. Durante a construção da Igreja Negra e Misteriosa da Água Vermelha, vê-se um ritual religioso, em que a estrela de Davi; símbolo judaico-cristã, ao lado de elementos da terra, ainda intimamente ligados à cultura indígena e africana, estão se misturando na cabeça de João Camargo, nascendo assim, uma nova forma de conceber o mundo imaterial.

Diante das mudanças na vida deste personagem e na do Brasil, o filme retrata o quanto João de Camargo se tornou uma pessoa conhecida, principalmente, entre os mais necessitados, atraindo assim, a ira da Igreja Católica e das políticas sanitaristas que combatiam o curandeirismo.

A igreja se incomodava com o sincretismo do novo líder espiritual, que trazia em grande medida, paz e conforto para uma população que se via excluída da nova República, recém instaurada.

O Estado o persegue através das políticas de higienização, que viam no curandeirismo um retrocesso às medidas de civilizar o Brasil nos padrões europeus. Vale lembrar, que nesse período, o Rio de Janeiro, por exemplo, estava vivendo movimentações populares, contrária a tais medidas, que ficaram conhecidas por Revolta da Vacina.

O filme retrata também, o quanto João de Camargo também não era aceito por quem cultuava a religiosidade vinda da África. Era acusado de fazer “reza de branco” e de querer virar branco. Para ele, “quem quisesse viver aqui [Brasil], tem que saber juntar tudo”. João era o amálgama de várias religiões. No entanto, não era aceito pelos seus irmão africanos, por estar negando seus antepassado, tão pouco pela Igreja Católica, que o chamava de herege. O Estado, acima de tudo, o acusava de curandeirismo.

Há uma cena no filme, em que percebe-se que a direção quis fazer uma analogia entre a figura de Cristo e a de João de Camargo. Ao voltar da prisão, e ver que os fiéis estava fazendo comércio em frente a Igreja da Água Vermelha, o líder espiritual, derruba todas as barracas que ali estavam, afirmando que ali não se vendia a palavra de Deus. Ato semelhante ao que Jesus fez em frente a Sinagoga de Carnafaum, ao expulsar os que vendiam e compravam produtos naquele lugar. (Marcos 11:15).

Apesar de priorizar em alguns momentos, elementos da cultura cristã, em detrimento de símbolos de outras religiosidades, o filme retrata bem, a vida do Preto Velho, que se tornou personagem importante da religiosidade brasileira, por ter levado fé, conforto e atenção aos que mais necessitavam.

1 Graduado em Licenciatura em História, pelo Centro Universitário Jorge Amado e Especialista em História Econômica e Social do Brasil, pela Faculdade São Bento da Bahia.
2 FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p.245-282.   

3FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. 2. ed, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2012. p.155.